terça-feira, 10 de junho de 2008

Suape - novembro/2007

Bar do Bio, Ilha Tatuoca, 20 milhas ao sul de Recife.
Palhoça a beira mar com bancos de madeira, encostos feitos de cipó, pés de caju ao redor, casinha de pau a pique, canoa. Não há energia elétrica nem água encanada.
Voltamos no tempo.
O Bio nos conta que ele sozinho constrói tudo e que difícil mesmo foi trazer todo o barro, saco a saco, para erguer sua casinha. E trazer a água também, para molhar o barro. Agora está orgulhoso com sua nova obra, um sobradinho todo em madeira com varanda bem ali ao lado. Sem energia elétrica, cada pedaço de madeira é serrado, pregado e parafusado manualmente, na raça. Os caranguejos andam pequenos e difíceis de capturar nessa maré. A pesca com rede de espera ou de bater dá robalos e tainhas.
O papo flui gostoso acompanhado por uma caipirinha feita com uma cachaça nem tão gostosa assim.

De um lado, a poucas centenas de metros está o movimentado porto de Suape e do outro lado, a poucas centenas de metros também, um grande hotel. Empreendimentos onde trabalham milhares de pessoas com toda infra-estrutura disponível. E aqui, bem no meinho dos dois o Bar do Bio sem água, energia elétrica, esgoto. Como pode?!

Tem dois lados, diz o Bio: emprego agora só não arruma quem não quer. Por outro lado, acabou-se quase todo o manguezal e o canal dragado alterou a configuração dos rios e praias. A pescaria já não é mais a mesma.

De volta ao barco filosofamos longamente sobre progresso, evolução, espécie humana, desequilíbrio, egoísmo e altruísmo. O papel e o impacto das ações de cada indivíduo na coletividade. O que somos, de onde viemos, porque e para onde vamos. Viver no barco, velejando por aí é a melhor contribuição que podemos dar à nossa espécie, à sociedade? Trabalhar para uma grande corporação seria uma contribuição maior?
A melhor contribuição que cada indivíduo pode dar é perseguir sua vocação?
Altruísmo, abnegação, egoísmo, opulência, descaso, alienação: em busca da felicidade, uma meta-análise irreverente... O sol se pôs lindo à nossa popa. A lua cheia nasceu linda na proa do Pajé. Como o papo não tinha fim e antes que viesse a manhã, nossas famintas barrigas venceram nossos filosóficos cérebros e fomos preparar o jantar...

Tarde dessas, vagabunda, aparece o Arthur do veleiro Toa-Toa, ancorado pertinho do Pajé. Freqüentador antigo dessa área e excelente papo nos instrui um pouco a respeito do local. Diversas batalhas envolvendo portugueses, espanhóis e holandeses foram travadas aqui e resquícios ainda podem ser achados soterrados no leito de areia (o Arthur desenterrou umas balas de canhão). O hotel foi construído em cima de um cemitério. Uia, já ouvi essa história antes... Trocou de administração diversas vezes. Houve inclusive um caso notório de intoxicação alimentar dos hóspedes.
A construção de um estaleiro está destruindo o pouco que resta do manguezal.
Os rios Massangana e Ipojuca já não deságuam mais aqui, foram desviados por conta do porto. Ou seja, estamos num falso estuário. A ilha Tatuoca deixou de ser ilha. Agora ilha é a Cocaia, que antes era parte do continente. A filha do Bio, com 13 anos de idade, está grávida!

Conversador o Arthur nos proporciona horas de entretenimento com causos de mastros quebrados, lagostas e peixes grandes, tempestades elétricas, resgates no meio do oceano, naufrágios, mergulhos no Atol das Rocas e outros como só um bom contador de histórias consegue. De quebra nos deu os waypoints para a entrada da praia dos Carneiros, 20 milhas ao sul daqui.

Em outro fim de tarde recebemos a deliciosa visita do Daniel, Gabriel e Camila com respectivamente 6, 3 e 5 anos de idade. Fizeram de túnel a parte de baixo da mesa do salão, saíram pela gaiúta da cabine de proa (um clássico para todas as crianças que vem ao Pajé) e se fartaram com biscoitos. Vieram de jangada, banhos tomados, arrumadinhos e curiosíssimos. Aquela irresistível mistura de timidez e jeito maroto que só as crianças têm.

O Marquinho, pai dos meninos e tio da Camila foi quem nos ajudou na entrada pelo canal. Ele é o prático para os veleiros que se aventuram barra adentro. Para se atingir o local de ancoragem espera-se pela maré cheia (a variação de maré por aqui pode chegar a 2,5 metros) e navega-se espremido entre o recife e bancos de areia. Como diz o Nelson, amassamos os linguados tão perto de encalhar que estivemos. Apesar dos waypoints (coordenadas que auxiliam a navegação) que o Fabinho e a Cecília nos passaram não sei se teríamos sangue frio o suficiente para entrar sem a ajuda do Marquinho. Tudo muito justo, uma besteirinha e...

O lugar é maravilhoso! O porto e o hotel passam despercebidos. Com a maré baixa ficávamos boiando num filete de água, parecia uma poça de água com o Pajé no meio. Pedras de um lado e um enorme banco de areia do outro. Um espetáculo. Pura paz.

Nos divertimos dando umas voltas num Hobie Cat 16 emprestado. Velejar empinando um dos cascos faz bem a saúde, bastava ver nossos sorrisos enquanto voávamos sobre as águas rasas e transparentes em um final de tarde daqueles.


O fato é que apesar das variações de maré praticamente não há correnteza (provavelmente fruto de tantas interferências) e pudemos dar uma bela e merecida limpada no casco do Pajé, que já estava verde depois de quase dois meses parado no Rio Paraíba.

A viagem de João Pessoa até Suape foi tranqüila, 16 horas de vento fraco, mar calmo e uma lua cheia daquelas que faz sombra de tão clara.

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