Exibir mapa ampliadoVoltando um pouco no tempo, preciso contar algo que esquecemos no ultimo relato: em uma tarde, durante o trajeto Marquesas-Manihi , tomei um susto ao olhar para trás e ver um peixe muito grande a poucos metros da popa do Pajé. Ele ficou ali uns instantes e assim que chamei a Paula o bicho desapareceu. Já li que os peixes de bico costumam fazer isso, e acho que foi o caso, pois era algo muito maior e bem diferente de um golfinho ou tubarão.
Bem, depois de ótimos mergulhos e da excelente companhia, deixamos Manihi. Tivemos que esperar por quase uma semana o tempo melhorar. Cruzamos o passe no final da tarde enquanto o Fernando, Alma e Joseph nos acenavam e gritavam do cais. Navegamos a noite toda com um vento bem fraquinho e um mar muito tranqüilo. A entrada no passe de Fakarava, o segundo maior atol de Tuamotu, também transcorreu sem incidentes. O único quase incidente foi que quase perdi o avião para o Brasil porque fizemos uma confusão com a data da partida. Mas lá fui eu enfrentar longas horas em aeroportos e vôos enquanto a Paula ficava com o Pajé e o Bicho Vermelho ancorados em frente a vila.
E no mesmo lugar em que tinha ficado com o coração em frangalhos no início do ano, na porta da classe do Alex, voltei a sentir fortes emoções quando o vi com um sorriso enorme numa boca cheia de dentes recém-nascidos. Uma corrida, um pulo, um longo abraço apertado. Ooo coisa boa! Fizemos sua mala e no dia seguinte já estávamos no aeroporto preparados para a maratona São Paulo-Santiago-Ilha de Pascoa-Tahiti. O moleque agüentou super bem o tranco, e já se considera um experimentado viajante - ultimamente tem curtido ficar contando o número de carimbos no seu passaporte.
De volta a Fakarava fomos a outra ancoragem mais ao sul, uma daquelas praias de sonho. Havia um hotel próximo onde poderíamos usar as instalações para deixar o bote e as bicicletas. Mal a âncora havia tocado o fundo nosso impaciente atleta já estava de bola na mão: “pai, vamos jogar futebol?” Que sina...
E essa foi uma das frases mais repetidas no período que passamos lá. Só era ameaçada pela “pai, posso brincar com o Nintendo?” Olha, quem nuimtendo sou eu! Todas as outras atividades não tinham chance nenhuma de competir com a dupla futebol-nintendo. Mesmo assim demos longos passeios de bicicleta. Também nos divertimos saltando do píer do hotel para a água incrivelmente transparente. Mergulhamos bastante e mesmo no raso havia uma profusão de peixes multicoloridos. O nosso preferido era de uma espécie conhecida por “Picasso”. E de fato o peixe é uma pintura linda. Para descrevê-lo poderia usar páginas, infelizmente as fotos não fazem justiça a beleza do bichinho.
Nos corais mais afastados e profundos sempre avistávamos bons peixes e tubarões. Não pegamos nenhum, já que não conseguimos descobrir quais tinham ciguatera e quais não. A ciguatera é uma toxina que alguns peixes adquirem ao devorar outros peixes que se alimentam de coral. O problema é que as espécies de peixe que apresentam a toxina variam de atol para atol, e as vezes até dentro do mesmo atol. Em Manihi o Fernando e amigos sempre nos diziam quais eram bons (pelo jeito, lá todos são bons). Mas como em Fakarava não tínhamos ninguém que nos orientasse padecemos um jejum peixístico.
Acabamos ficando mais tempo do que previsto, pois entrou um ventão e o mar cresceu muito. Como não queríamos nos arriscar nas entradas dos passes, e nem ficar chacoalhando sem necessidade, resolvemos esperar. Nesses dias futebolísticos e de marzão o Beduína também estava por lá e tivemos grandes noites de jogatina de Uno e dominó.
Conhecemos o pessoal do Canela, outro veleiro brasileiro velejando aqui pelo Pacifico. Gaúchos de Canela (claro), Duda, Claudio e Guto são verdadeiras figuras. Divertidos, grandes tomadores de cerveja e solteiros, estão sempre armando a próxima balada. Como o reversor do motor (algo como o câmbio do barco) deles estava quebrado, brincávamos que era um autentico barco de gaúchos, só engatava a ré...
Quando as condições melhoraram fomos a Toau, distante apenas 18 milhas.
A beleza de Toau nos deixou boquiabertos apesar de virmos de lugares maravilhosos como Manihi e Fakarava. Ancoramos próximos a mais uma praia de tirar o fôlego e “pai, vamos jogar futebol?” Mas a praia era inteiramente formada de coral e conchas e não dava pra jogar bola. Puxa, que pena, eu disse, respirando aliviado...
Fizemos uma caminhada até o passe e encontramos diversos filhotes de tubarão galha-preta nadando muito próximos a margem, em menos de 30 cm de água. Pensei em uma moqueca de tubarão, mas os danados não se aproximavam quando eu estava empunhando o arpão. Nesse mesmo lugar vimos um peixe enorme dar um velocíssimo bote num cardume de pequenos peixes bem ao nosso lado. Não conseguimos entender como um peixe daquele tamanho conseguia chegar tão próximo a praia e se afastar com tamanha destreza.
Essa ancoragem nos encantou por diversos motivos. Primeiro foi um mergulho num cabeço de coral no lagoon. Uma formação circular e que descia verticalmente até uns quinze, vinte metros de profundidade. Muita vida e muitas, muitas cores. Peixes minúsculos e extra-coloridos se refugiavam nas frestas dos corais ao lado de conchas fantásticas, tubarões galha-branca e galha-preta nadavam tranquilamente a nossa volta, garoupas imensas e mansas que nos deixavam quase tocá-las, moréias, pepinos do mar e a consciência de estar vivendo um momento inesquecível, partilhando maravilhas com as pessoas que você ama. As garoupas deram um show a parte, algumas incrivelmente grandes nadando próximas aos tubarões no maior sossego.
O segundo motivo foi presenciar diversos greenflashs, um fenômeno que dá uma coloração esverdeada ao sol quando este está prestes a desaparecer no horizonte. Nunca havia visto antes e lá vimos por três dias seguidos.
O terceiro motivo foi dar comida aos tubarões. Uma tarde num grande coral próximo arpoei um peixe, amarramos num cabo do bote e o atiramos na água. Depois de uma alguma espera, diversos tubarões desconfiados apareceram e ficaram dando voltas por um bom tempo, cada vez se aproximando mais. De repente do fundo vem uma garoupa imensa, rápida como um raio e avança no peixe. Só que ao mesmo tempo um tubarão finalmente toma coragem e ataca. Os dois colidem na superfície ao nosso lado e batem no bote, jogando água pra todo lado e nos molhando. Vou te falar, essas garoupas de Tuamotu não são fracas não... Nisso todos os tubarões entraram num frenesi e começaram a atacar o peixe, disputando aos esbarrões. Por duas vezes morderam o peixe junto com o cabo e foram levando peixe, cabo e o bote com a gente em cima. Impressionante a vitalidade dos bichos, nos rebocavam velozmente por vários metros até que conseguissem se desvencilhar.
Dessa ancoragem nos dirigimos ao outro lado de Toau, onde Bel e Bob nos aguardavam em outro cenário deslumbrante. Os barcos usam poitas pertencentes a uma das poucas famílias residentes nesse atol. O Ali viu a praia e “pai, vamos jogar futebol?”. Novamente ele deu azar: além de mínima, a praia era concha e coral, mal conseguíamos andar descalços.
Mergulhei ao lado do Pajé e não acreditei no que vi: um verdadeiro jardim de garoupas. Grandes, médias, pequenas, gigantes, era garoupa de todo o jeito pra todo lado. Bom demais para ser verdade, pensei. E de fato, depois nos disseram que naquele local algumas garoupas poderiam ter ciguatera. Como não dava pra saber qual, não comemos nenhuma. Mas eram tantas e tão seguras de si que rapidamente aprendemos onde as maiores ficavam e de vez em quando íamos visitá-las. A água era tão clara que mesmo com mais de 10 metros de profundidade podíamos ver nossas amigas sossegadas lá embaixo. Avistamos também napoleões gigantescos, peixe meio feioso, com um calombo na testa...
Em uma manhã que o mar estava bem calmo fomos mergulhar com Hugo, Gyslaine e Bob do lado de fora da barreira de corais, após termos nos informado sobre que peixes poderíamos comer. Como sempre, os parrot fish estavam liberados, além de alguns outros. Caímos em uma água incrivelmente azul e fomos derivando junto aos botes pela barreira de coral, que apresentava um declive suave até uns quinze, vinte metros e depois despencava num paredão vertical. Com os tubarões sempre presentes, ficávamos próximos aos botes e quando um de nós descia para arpoar um peixe os outros ficavam de olho. Assim que um peixe era arpoado os tubarões não tardavam a aparecer, antes mesmo de a gente ter conseguido voltar à superfície. Os malandros ficavam nos acompanhando, nadando mais ao fundo, colados no paredão. No fim nos acostumamos e nem ficávamos assustados quando eles se aproximavam (se estivéssemos sem nenhum peixe arpoado por perto, claro). Agora quando arpoávamos algum peixe era bonito de ver a velocidade em que o jogávamos para dentro do bote. Acho até que os tubarões se admiravam: como esses caras são rápidos...
No final desse dia fantástico repetimos a alimentação aos tubarões. Contamos mais de quinze rondando o peixe e nosso bote, alguns bem crescidinhos.
Alguns dias depois Beduína e Bicho Vermelho saíram em direção ao Tahiti, pois queriam estar presentes nas comemorações da queda da bastilha. Nós fomos para Apataki, outro atol que queríamos conhecer antes de irmos a Papeete.
Nossa entrada no passe foi muito tranqüila, conseguimos chegar no horário certo e o mar estava bem calmo. Fomos navegando pelo lagoon até encontrarmos um motu (ilha sobre a barreira de corais) cheio de coqueiros e o que parecia ser uma praia maravilhosa. “Pai, vamos jogar futebol?” A praia, obviamente, era só conchas e coral. Assim mesmo tive que trocar uns passes com o Ali e ficamos com o pé cheio de pequenos cortes.
Havia uma família passando uns dias acampados por lá. Cumprimentos trocados, um dos rapazes tenta nos explicar alguma coisa e nos encaminha para o interior do motu, onde há uma espécie de totem – Tehere. Entendemos que devíamos prestar nossa homenagem, juntamente com outras que lá já estavam. Cada um de nós fez carinhosamente sua composição de galhos, flores e folhas. Pode parecer bobo, mas foi muito legal e sentimos aquele gostinho especial em poder participar, mesmo que bem pouco, da cultura dos hospitaleiros e gentis polinésios.
Mergulhamos e mais uma vez nos deslumbramos com as cores e a vida submarina. Pretendíamos ficar mais por ali, mas o vento virou e saímos em busca de uma ancoragem mais abrigada. Fomos parar frente a uma marina em construção, onde fomos muito bem recebidos pelos donos que além de nos dizerem que peixes poderíamos pescar por ali, também nos ofereceram uma poita de graça. Assim que tive uma chance fomos procurar um lugar pra mergulhar e garantir o jantar. Achamos um cabeço de coral, ancoramos, mergulhei e antes mesmo de chegar muito próximo ao coral já vi uma garoupa me olhando. Continuei descendo, parei ao lado dela, apontei o arpão e ela continuou lá, me encarando placidamente. Tive que usar todos meus instintos primitivos de provedor para atirar, muita moleza. A Paula e o Ali nem acreditaram quando voltei com o peixe: já? Por aqui só se pesca mesmo pra comer, não há aquele desafio esportivo comum em outros lugares. Procura-se sempre pegar um peixe não muito grande (menor risco de ciguatera), suficiente para uma refeição. O desafio aqui é estar ligado nos tubas, sempre presentes.
Como já estava se aproximando o dia que deveríamos ir ao Tahiti, navegamos até o outro extremo do atol e ancoramos em frente a uma “pai, vamos jogar futebol?”. A praia não tinha dois metros de largura, mas era de areia, logo...
Deixamos Apataki em mais uma daquelas janelas de tempo para percorrer as duzentas milhas que nos separavam de Papeete. Foi uma velejada ótima, exceto pela ultima noite, em que o vento deu na cara e entrou um swell grande pelo través. Chegamos ao amanhecer molhados, salgados e chacoalhados. Ancoramos em 15 metros de profundidade, com uma água tão cristalina que vemos o fundo.
Em Papeete reencontramos Beduína, B. Vermelho, Canela e Itusca. Será que já houve cinco veleiros brasileiros ao mesmo tempo aqui antes? Para nós é ótimo! Além da festa que é rever os amigos ainda tive uma excelente surpresa: o Morongo, que estava por aqui, me presenteou com um longjohn novinho em folha. Valeu mesmo Morongo, presente pra lá de especial, já que sou Mormaii desde criancinha!
Alugamos um carro com nossos vizinhos e fomos dar uma volta pela ilha, muito bonita. A Polinésia francesa tem cerca de 260 mil habitantes, cerca de metade nessa ilha. Ou seja, Papeete é uma cidade com todos os confortos e desconfortos de tantas outras. Foi delicioso entrar num grande supermercado e encontrar de tudo, apesar de caro.
Visitamos algumas cachoeiras, mas o ponto alto do passeio foi Teahupoo. Trata-se de um dos mais famosos picos de surf do mundo, conhecido por suas ondas extremamente cavadas, rápidas e tubulares. O lip (crista da onda) é enorme, pesado e projetado longe, com uma força descomunal. Na praia encontramos uma turma de surfistas brasileiros: Leandro, Lucas e Caio. Como a onda quebra na barreira de corais, alugamos um taxi-boat e fomos conferir. Demos sorte, naquele dia entrou um swell com ondas de 4 a 5 metros.
Presenciamos um espetáculo impressionante. As ondas são animais mesmo! Alucinantes! E ficamos orgulhosos com nossos garotos brasileiros, a molecada botou pra baixo e pra dentro, com estilo. Olha, tem que ver para acreditar. A onda é gigantesca, vertical e o tubo um verdadeiro salão.
Na volta achamos uma graminha à sombra de uma bela arvore e fizemos um delicioso piquenique/farofa. Nos dias que se seguiram o Ali aproveitou pra colocar seu surf esqui em dia e preparar-se para a volta as aulas e gripe suína. Fomos ficando jururus com a aproximação da sua partida, ainda mais porque dessa vez ele voltaria com a Paula e eu ficaria por aqui. Preocupado, ele perguntava com quem eu ia ficar, quem iria cuidar de mim...
No aeroporto aquela tristeza de sempre, sem comentários.
Aqui estamos Pajé e eu aguardando Ana Paula retornar de sua temporada paulistana para irmos as outras ilhas sociedade: Moorea, Huahine, Raiatea, Tahaa, Bora-Bora e Maupiti. Faz um século que não velejamos de kite e quero tirar o atraso.