Atracamos no Centro Náutico da Bahia, uma marina bem em frente ao Mercado Modelo e ao Elevador Lacerda. Na cara do gol. E fomos atrás do prejuízo: tome procurar peças, e-mails pra Alemanha para o fabricante do leme de vento, gerenciar um técnico eletrônico para consertar os pilotos automáticos e outras coisinhas mais.
Mas deixa isso pra lá...
O que valeu:
1. Encontrar o Luiz e a Lúcia Helena que estavam em Salvador para o batizado de suas pequenas Izadora e Tereza. Feliz coincidência! Além da diversão que sempre é encontrar grandes amigos tivemos de brinde uma aula sobre sincretismo religioso na Bahia. A historia é longa, mas para resumir: presenciamos um padre católico batizando um menino judeu em um terreiro de Candomblé sob a orientação de uma mãe de santo! É mole?! Num determinado momento havia tantas unções, ervas, águas bentas, azeites, etc que o Mario perguntou: o cara vai batizar ou fazer moqueca?
Os dias pós-batizado foram um festival gastronômico por Salvador com direito a refeições com nomes pouco ortodoxos como nabucetê e frutas fálicas como sobremesa. Já comeram ou viram ou pegaram um ingá? Humilhante, diz Mario! Depois de conhecer o ingá começou a se intitular ingá anão ou ingá bonsai... Sob vigorosos protestos da Paula, que o chama de Ingá Rei.
2. Correr a dois a regata Aratu Maragojipe com a Pauletes no leme e chegarmos em 10º lugar entre mais de 140 barcos. Pajé sagrou-se bicampeão em sua classe nessa regata. A largada foi das mais emocionantes: disputamos com um navio enorme que vinha bem atrás de nós. Foi um festival de bordos pelo estreito canal com aquele monstro na nossa esteira. Divertido, mas um pouquinho emocionante demais quando é a sua casa/barco que está em jogo. Depois que nos safamos foi uma belíssima orça folgada até o estuário do Rio Paraguassu. Águas transparentes, mas rasas demais pro nosso gosto (em um determinado momento estávamos a 6,5 nós de velocidade com 2,5 m de profundidade e o Pajé precisa de 2 m pra não bater no fundo).
3. Muitos passeios pela baía de Todos os Santos, alguns acompanhados pelo James e Lorna. Cachoeiras e ruínas históricas no rio Paraguassu (com suas figuras: os pequenos Gini, Mauricio e Gabriel e as gentis donas Aida e Maria), velejadas incríveis em cenários maravilhosos, Loreto, Maria Guarda, Bom Jesus dos Passos - vilarejos de Jorge Amado - kitesurf na Coroa do Limo, frutas no mercado municipal de Itaparica e muitos, muitos descobrimentos. Fomos ao fundo da Baía em uma cidade chamada São Francisco do Conde. Para se ter uma idéia, havia uma placa de sinalização de trânsito com três setas que indicavam Restaurante, Banco, Saída. Procuramos o restaurante por um bom tempo, mas não achamos. Aí achamos um boteco e fomos tomar uma cerveja. Em frente ao boteco um poste de luz. No poste de luz um interruptor. Começa a escurecer. O cara do boteco vai lá e pimba, liga o interruptor e acende a luz do poste! Vocês já viram poste de luz de rua com interruptor?
Descobrimos também que existe, de fato, um lugar chamado Cacha-Pregos! Estivemos lá. Fotografamos para ninguém duvidar. Já conhecíamos onde o vento faz a curva, mas agora, depois de Cacha-Pregos e do poste de luz com interruptor viramos crédulos e estamos planejando expedições às casas do Coelhinho da Páscoa e do Papai-Noel.
Dizem que o Coelhinho da Páscoa beija muito bem e o Papai-Noel faz uma caipirinha incrível... Façam suas inscrições!
Depois de um mês de périplos baianos deixamos Salvador e a Baía de Todos os Santos com aquele gostinho de quero mais, com o leme de vento aos pedaços e um piloto automático funcionando meio calabresa, meio mussarela. E lá fomos pro Recife, pois a regata Recife-Noronha nos aguardava. A viagem foi um sossego e muito romântica. Lua crescente, mar e vento calmos. Dourado na linha, sashimi no ato e um delicioso assado mais tarde.
Chegamos em um final de tarde e quase encalhamos na entrada do Cabanga Iate Clube. Nada que o poderoso Yanmar 75 HP do Pajé não resolvesse rapidamente. Uma rezinha, uma girada no eixo e lá vamos nós boiando de novo.
Manhã de terça-feira (07/8), sol nasceu e as baleias nos deram boas vindas. Abrolhos no visual!
Por volta do meio-dia, ancoramos bem próximos a Ilha Siriba em fundo de areia com uns três metros de profundidade. Água tão cristalina que avistávamos o fundo, corrente, âncora, peixes e tartarugas, um show!
Avisamos o pessoal da marinha e IBAMA de nossa chegada e abrimos nossas cervejas comemorativas.
A boa surpresa foi quando recebemos a visita de praxe do pessoal do IBAMA e o guarda do parque era o Maurício, conhecido de outras paradas do Pajé em Abrolhos.
E como era nosso dia de sorte, outro Maurício, do catamarã Sanuk nos ofereceu um delicioso dourado assado com batatas e cebolas, devidamente compartilhado entre a faminta tripulação do Pajé e o Maurício e Murilo. Dias depois, mais uma cortesia do Maurício – Sanuk: um catado de siri de lamber os beiços.
Visitamos as ilhas e nos encantamos com a companhia dos atobás, fragatas e gravinas.
Mario serviu de intérprete para os adoráveis James e Lorna, casal sul-africano que viaja com o catamarã Mind the Gap. Impossível esquecer os muffins preparados pela Lorna!
Passamos dias maravilhosos entre baleias, mergulhos, jogos de futebol na praia (para deleite do são-paulino Alex) e uma cachacinha amiga no Pajé após o expediente.
Se Abrolhos já parece incrível visto acima d’água, chega a emocionar visto debaixo dela. Com James e Lorna fizemos um mergulho na encosta da ilha Redonda. Encontros com tartarugas, frades, budiões e outras centenas de peixes multicoloridos. Água transparente, sorriso estampado no rosto e emoção no mergulho de mãos dadas. Que mais podemos querer?
Os mergulhos com o Ali foram marcantes, compartilhar seu entusiasmo, um presente. A água estava fria, mas ele não amarelou e ficávamos na água até o guri ficar com os lábios roxos, tremendo de frio.
E como tudo o que é bom pode melhorar conhecemos Lucas e Sandra, vizinhos do veleiro Santa Paz, que estavam com suas duas filhas pequenas a bordo.
Deixamos Abrolhos após 4 dias inesquecíveis e rumamos a Salvador.
O vento e o mar estavam muito bons e o leme de vento levou o barco com tranqüilidade até a madrugada, quando diversos pirajás (nuvens pesadas que trazem vento e chuva) nos mantiveram acordados. O vento foi refrescando, refrescando e o mar foi crescendo, crescendo até que pela manhã começou a ficar muito incômodo, estávamos só com a buja e um pouquinho da genoa e um mar grande de través chacoalhava bem. Os dois moleques nem deram bola para as ondas e continuaram no maior banzé.
Aí uma peça do leme de vento quebrou, aí o piloto automático parou de funcionar, aí o piloto reserva também necas de pitibiribas e aí o cansaço e a cautela falaram mais alto e resolvemos ir para Ilhéus, distante 10 horas de onde estávamos. Chegamos ao anoitecer e com a ajuda do pessoal do Iate Clube achamos um lugar para ancorar.
Só que a ondulação entrava na ancoragem e balançávamos pra dedéu. Um saco.
Mas como diria o filósofo, o jeito é fazer do limão uma caipirinha...
Aproveitamos muito a piscina e restaurante do Iate Clube. Alugamos um carro e fomos a Itacaré, Comandatuba, Serra Grande, Olivença e a molecada tomou sorvete na Praça de Ilhéus. As meninas tiveram seu dia de rainhas no Hotel Transamérica de Comandatuba com petiscos e caipirinhas à beira da piscina.
O mar e o vento continuavam grandes e diversos veleiros e pesqueiros estavam abrigados próximos a nós.
Enquanto esperávamos melhores condições uma semana passou voando e de repente estávamos levando os meninos e Andréa para o aeroporto. Coração ficou pequenininho ao ver o alemãozinho ir embora... Ele também fica tão chateado que na despedida evitou olhar nos olhos e entrou rapidamente na sala de embarque. Nó na garganta, lágrimas. Voltamos ao Pajé e nos mandamos naquela mesma tarde para Salvador, onde chegamos 15 horas depois, levando na mão, já que os pilotos automáticos e o leme de vento continuavam em greve.
Após horas, dias, semanas, meses de preparativos que incluíram pintura de costado e fundo, revisões das partes mecânica, elétrica e hidráulica, do leme de vento, desentortar guarda - mancebos, galvanizar ancoras e correntes, remendar velas, costurar almofadas, trocar a madeira da borda falsa, as baterias, escotas e adriças, filtros, conexões, mangueiras, porcas, parafusos, grampoletas e rebimbocas o Pajé estava como sempre: ótimo e ainda cheio de coisas para ajeitar! Até o enrolador tentamos arrumar (enrolador da genoa, não o Mario), mas em ambos os casos fracassamos... O enrolador não desenrola e o Mario só enrola!
Como diz o Alex Ufer, a quantidade de coisas para arrumar no barco é uma constante: cada vez que você elimina um item aparece outro. No Pajé sempre mantemos algumas tarefas a serem feitas para diminuirmos o risco de aparecerem outras piores. A Paula que veio ao Pajé com a promessa de uma vida ativa e ao ar livre - não pode reclamar: seus primeiros meses foram plenos de pinturas e lixadas e escovadas e palhaçadas e cervejadas e risadas e algumas outras adas impublicáveis.
Houve um momento em que estávamos trabalhando tanto, tanto, que a trilha sonora era “entrei de gaiato no navio, entrei, entrei pelo cano”. Decidimos dar um tempo. Tiramos férias e fomos para a Ilha Cotia, um dos cantinhos mais sossegados que conhecemos. Com o Pajé devidamente abastecido de vinhos e mantimentos escolhidos a dedo, ancoramos a poucos metros da praia deserta e passamos uma das melhores semanas das nossas vidas. Passeios de bote pelos mangues, mergulhos, frescobol, wakeboard e deliciosos jantares à luz de velas preparados com esmero pela Chef Paula: robalo com manga, risoto de camarão com aspargos frescos e outras delícias.
Refeitos, voltamos às manutenções preventivas. Nossos vizinhos do Planckton, Cecília (com o Igor ainda na barriga) e Fábio acompanhavam a maratona e também participavam nas muitas horas boas em cachoeiras, jantares e passeios na Ilha Grande. Algum tempo depois ajeitamos bicicletas, computador, ipod, máquina fotográfica, tela de cristal líquido, CD player, pranchas de surf, wake, kite, windsurf, roupas de tempo e equipamentos de mergulho. Enchemos armários e gavetas com itens de primeiríssima necessidade (dezenas de biquínis, havaianas, bandanas e faixas pro cabelo), 500 litros de diesel e 1000 de água, um moleque de 5 anos de idade e nos mandamos. Soltamos as amarras numa manhã chuvosa de sábado, deixando Paraty – nosso cantinho especial por tantos meses – para trás.
Para a Paula, friozinho na barriga, afinal a mudança é grande. Mas, segundo ela: “tô seguindo meu amor e isso só pode me levar a um bom lugar!”
O Mario, obtuso como sempre: “é nóis!”
O Fred, amigo do Ali, também com 5 anos de idade e sua mãe, a grande amiga Andréa (idade não revelada), embarcaram no Pirata´s Mall poucos dias depois e fomos para a enseada do Sítio Forte em Ilha Grande. Enquanto o Mario dava uma limpadinha no casco numa água fria pra dedéu, Paula e Andréa mandaram ver no preparo dos quitutes para a viagem e os guris se divertiram pescando diversos peixinhos e os devolvendo ao mar.
Agitamos durante os dias e tiramos as noites pra falar com a família. Dona Iraci surpreendeu com sua fluência na Internet, o que nos garantiu boas conversas via Skype. Nina e Cláudio também batiam ponto nas conversas internéticas. Apesar das saudades e preocupação das mamis as conversas sempre corriam entre muitas piadas e risadas.
Saímos de Ilha Grande dia 04/08, sábado de manhã, de olho na previsão do tempo. Queríamos encontrar uma frente fria na altura de Cabo Frio para nos ajudar a passar pelo Cabo de São Tomé (esse trecho comumente apresenta ventos e corrente de nordeste, ou seja, contrários para quem sobe à costa brasileira). Essa frente fria nos interessava muito porque seria bem leve e, com a molecada a bordo, preferíamos mar e vento calmos, mesmo que com isto tivéssemos que motorar um pouco.
E assim foi. Só que chegamos um pouco antes e demos de cara com vento e mar de nordeste. Algumas horas apenas, mas suficientes para arrancar nossas duas luzes de navegação de proa, o banquinho de madeira que ficava no púlpito e encher o paiol da âncora de água.
Aí chegou a frente fria, amena como previsto e tivemos uma excelente navegada, inclusive com a necessária motorada para chegarmos em Abrolhos.
A molecada tirou de letra, brincando o tempo todo (com intervalos para breves arranca-rabos) e comendo muito. O Alex insistiu em fazer um turno da noite com o Mario e de fato ficou lá fora, o tempo todo. Os dois amigões!
Paula, para sua própria surpresa, saiu-se melhor do que imaginava. Stugeron é mesmo um santo remédio! Confirmou sua vocação para marinheira cuidando de todo mundo, fazendo longas horas nos turnos e mandando ver durante o dia com refeições, cuidados, arrumações, etc. Andréa mareou e sofreu um pouco. Só um pouquinho... Fred estava em casa, achamos que nem percebeu que estava velejando.
São Tomé distanciou e em mais uma noite de turno, ficamos juntos até 1 da manhã esperando o nascer da lua, um daqueles momentos que nos faz acreditar em amor eterno! Noite estrelada, avenida de navios, plataformas de petróleo. No som Stones, Beatles, Pearl Jam, Ben Harper... Noite incrível, dá pra entender a paixão do Mario pela vela. A emoção era tanta que Paula esticou seu turno até as 6 da matina. Nascer do sol ao som de Carmina Burana – inesquecível. Sensação de felicidade plena! Segunda feira começando, bem diferente de tantas outras segundas... Uma nova vida.