domingo, 31 de maio de 2009

Marquesas - maio/09

A travessia entre as ilhas Galápagos e Marquesas, cerca de 3000 milhas náuticas, costuma fazer parte do imaginário de grande parte dos velejadores. Um dos motivos é por se tratar de uma viagem muito longa, pelo meio do nada e do maior oceano do planeta. Quem busca distancia da terra e da civilização vai ter isso de sobra. Outras viagens e regiões proporcionam essa mesma sensação, mas não oferecem o segundo grande atrativo: as condições benignas. Tempo bom, ventos suaves, mar calmo e piscoso. O terceiro grande atrativo é o destino em si, as maravilhosas e famosas ilhas do Pacífico sul.
E nossa navegada foi um clássico. Exatamente como havíamos lido e esperado. Qual é a graça de tudo correr sem surpresas? Muita! Quando só se esperam coisas muitas boas, o melhor é que tudo saia conforme esperado.

Saímos junto com o Bicho Vermelho e navegamos um a vista do outro por quase 1000 milhas, inacreditável. Esse primeiro terço da viagem foi o único que foi aquém de perfeito. O mar estava desencontrado, com ventos muito variáveis e algumas chuvas.

A seguir tudo se encaixou. Os dourados começaram a freqüentar nossas linhas de pesca, o tempo firmou, o mar arredondou e a vida virou um show. No começo estávamos mais preocupados com nossa singradura diária, e investíamos algum tempo tentando novas regulagens de vela. Aí a ponteira do pau do balão quebrou e desistimos de velejar em asa de pombo (uma vela pra cada lado do barco). Logo depois desistimos da vela grande também, que fazia muito barulho... Assim a genoa virou nosso principal meio de propulsão, e nos dias em que nos sentíamos especialmente ativos usávamos o balão.


Velejar a 4 nós (menos de 8 km/h) virou nosso meio de vida, passatempo e velocidade preferida. Quando entrava uma rajada e acelerávamos a 6 nós eu ficava muito incomodado. Pra que tanta pressa, Pajé? Isso aqui assim tá tão, tão bom, por que ir mais rápido? A noite muitas vezes íamos a 3, 3,5 nós e era aquele sossego. Nunca velejei tanto tempo, tão devagar e gostei tanto. Não quero mais saber desse negócio de 7, 8 nós, médias diárias de 160 milhas. Pra que?

E os dias foram passando lenta e deliciosamente. Um dia a Gretchen perguntou: “Como é que a gente pode ter certeza que o tempo realmente está passando?” Me lembrei da travessia do Atlântico alguns anos atrás, quando o Alex Ufer disse numa daquelas noites enluaradas: ”agora eu entendo porque os índios mediam o tempo pelas luas, é a única coisa que muda”. E era isso mesmo. A única coisa que mudava era o tamanho da lua a cada noite. De resto, tudo igual. O sol nascia e se punha nos mesmos lugares. O mar e céu lindos e azuis todos os dias. As noites!


A Paula, encarregada da navegação, todos os dias anunciava o vencedor do concurso, quando apostávamos quem adivinharia as milhas navegadas nas ultimas 24 horas. No começo da viagem era uma barbada, só eu ganhava. Mas as meninas pegaram o jeito e depois cada dia era um que acertava, e com uma diferença muitas vezes menor que duas milhas de um palpite pro outro. Dureza essa mulherada, vou te falar! Após o anúncio do vencedor do dia vinha a frase preferida da Paula: quase lá.

Grandes momentos também quando fisgávamos um dourado, aquela festa. Invariavelmente uma boa porção do peixe virava sashimi na hora. De vez em quando rolava também um ceviche. Um dia as meninas viram um bando de dourados seguindo o barco, a uns dois, três metros de distancia. Os maiores na frente, os menores atrás. A Paula olhou, escolheu bem e jogou a isca bem em frente do dourado eleito e pimba! Mais um peixe a bordo.

Muitos banhos de mar também. Abaixávamos a escada na popa e íamos a reboque. Abríamos os olhos debaixo da água para vermos casco e leme naquele azulão e depois ficávamos conversando maravilhados a respeito.

Nosso leme de vento, depois de anos descansando e dando despesas funcionou magistralmente. É o máximo de fato. O bichinho fica lá quietinho, indo e vindo sem parar, incansável e competente.

Ah, mas não é possível, foi tudo assim, desse jeito, nenhum problema, nada? Ora, claro que não. Apesar de fantástico o Pajé é um barco, e, como vocês sabem, barco quebra. Faz parte, mano. Mas, além da ponteira do pau do balão (que quebramos por descuido), não tivemos nenhuma quebra de verdade, apenas pequenas manutenções. Tive que mergulhar no paiol de popa para descobrir um barulho diferente no leme. O barulho não era nada, mas foi bom, pois apertei dois parafusos que estavam frouxos no quadrante e poderiam atrapalhar depois. Vai ver o barulho foi o jeito do Pajé avisar sobre os parafusos. Mas podia ter avisado antes, né Pajé? Tirar as tralhas todas do paiol, por mais tranqüila que esteja a navegada, é sempre um saco. Trocamos também uma cupilha no garlindéu (agora falei difícil, hein?) e tínhamos que limpar o filtro e bomba de água doce dia sim, dia não, já que entupiam continuamente. A Paula também deu uns pontinhos no tope do balão que estava descosturando. E por fim, dois fusíveis do recarregador de baterias queimaram. Ou seja, não dá pra reclamar. Obrigadão mais uma vez Pajé!

Chegamos a Hiva Oa depois de 25 dias de sonho. Nossa média foi de 120 milhas diárias. Bem vividas.

Hiva Oa é uma ilha imponente, com penhascos a beira mar e vegetação luxuriante. Não tem como não pensar em Ilha Bela, Ilha Grande e a região de Paraty. Fizemos a papelada, algumas compras de comida fresca e juntos com nossos queridos Bel e Bob viemos a Tahuata, uma ilha muito próxima e linda também.

Adoramos a pequena vila de Vaitahu. Toda arrumadinha e florida. E o ar cheira a frutas: por todo o lado vêem-se limoeiros, coqueiros, mangueiras, abacateiros, bananeiras, pamplemousseiras (perdoem minha ignorância) e outras eiras e eiros mais. Tanta vida que a Gretchen teve uma violenta reação alérgica – possivelmente causada por mangas – e ficou toda inchada. Fomos ao posto de saúde local, fantástico, e após uma injeção e alguns comprimidos ela melhorou.

Sempre voltamos de nossas caminhadas carregados, pois todos nos cumprimentam e muitos nos oferecem frutas. As pessoas são bonitas e sorridentes. Uma menina perguntou pra Bel se o Brasil era mais desenvolvido que essa ilha. Responder o que? Aqui todo mundo tem casa, escola, comida e assistência médica. Não tem crime, poluição, transito e corre-corre. Para os amantes da vida noturna, cultural e afins pode ser um pouco entediante. Essa excelente qualidade de vida só é possível porque a economia local é fortemente subsidiada pelo governo francês. Assim, até eu! A questão toda é a tal da sustentabilidade...

Poucos dias após a ida da Gretchen ao posto médico foi a minha vez: um grande botijão de gás escorregou e caiu sobre minha mão enquanto o Bob e eu recarregávamos nossos pequenos botijões. Já era noite e tivemos que ir chamar o Jean (o responsável pelo posto de saúde, um marquesano de dois metros de altura e gentil como uma moça) em casa. Ele veio meio reclamando e disse que a noite era só para emergências, e que meu problema era “petit”. Mas quando ele examinou minha mão sob a luz do ambulatório rapidamente cuidou do ferimento e me deu uns pontinhos. No dia seguinte voltamos lá com um cd de músicas brasileiras e foi um custo fazê-lo aceitar. A tão alardeada hospitalidade polinésia está viva e muito bem, obrigado.

Mas o tempo passa muito rápido. Já esta quase na hora das férias do sagüi e estamos envolvidos na logística de ir apanhá-lo em São Paulo, trazê-lo e depois levá-lo de volta. Vamos zarpar em breve para as Tuamotu e Tahiti onde os vôos são mais baratos e freqüentes.

O mundo gira e o Pajé navega. Em breve, mais um boletim de algum lugar por aí.